"(...) A esperança surge como pode. Dentre os destroços da história, ela nasce para um povo inteiro, emerge novamente para todos aqueles que recusam a ir contra o que a própria natureza exige, contra a razão humana: sonhar.
O sonho, como a espera, é movimento e reaparece com força à debilidade para nos lembrar que ainda estamos vivos, apesar de tudo, e que devemos mudar a imagem grotesca que o espelho da realidade os revela."
Trecho da apresentação dos editores do original do livro "As vozes do Espelho: contos, poemas e desenhos do zapatismo para construir o futuro" SP, 2001
O livro entrelaça diversos escritores e textos, com ilustrações de crianças das comunidades indígenas em resistência de Chiapas.
Escolhi deste livro um lindo texto de José Saramago, que fala de forma simples sobre a existência humana. Ao pensarmos sobre a nossa existência percebemos que não existem fronteiras, etnias, raças ou distancias que nos separam.
Somos seres com mais semelhanças que diferenças, quanto tempo levaremos para aprender isto?
Somos seres com mais semelhanças que diferenças, quanto tempo levaremos para aprender isto?
Do livro "As vozes do
Espelho - Contos,
poemas e desenhos do zapatismo para construir o futuro":
Um encontro
na praia
José
Saramago
O caso é estranho, mas, se repararmos
bem, não é mais estranho do que qualquer dessas pequenas coisas que todos os
dias nos acontecem, e que, por serem pequenas e repetidas, acabam perdendo seu
significado. E já não falo de maravilhoso, que é moeda gasta, quando não
falsificada. E ainda que assim fosse, têm-me acontecido nos últimos tempos
tantos casos estranhos que, mais um menos um, não vem por em tirar à minha
reputação. O local não tem nada de extravagante.
Elegemos uma
praia dentre as muitas que tem a terra e imaginemos que estamos sentados ao
sol, a receber do ar e da luz os benefícios que a nossa boa vontade admite. Em
nossa volta estão as pessoas que costumam estar na praia: crianças,
adolescentes, gente crescida e gente que não crescerá mais. Há corpos bonitos,
outros menos, nadadores atrevidos, outros tímidos – e tudo se confunde em azul
e verde, algas e aromas fortes, gritos de alegria, no calor que desce do céu e
sobe da areia. É muito bom.
Estou
sentando, a receber o meu quinhão de saúde. Olho o mar, um pouco melancólico
(eu, não o mar), e começo a pensar que é hora do banho.
Vou iniciar
o movimento que me levará até à água, quando sinto que alguém vem sentar-se o
ao meu lado. Ora, eu estou sozinho, não espero ninguém. Sinto esta presença como
um abuso à minha intimidade. Disfarço, não olho, mas reprimo o impulso de me
levantar: sou bem-educado, e não gosto de ser grosseiro.
Debato-me nesta
indecisão, quando, de repente, sinto a mão do intruso pousar sobre o meu ombro.
Já não dá mais para fingir-me de distraído. Olho e vejo: é um macaco. Não sou
medroso, juro, mas, assim sem mais nem menos, ao dar de cara com um chimpanzé (e é um chimpanzé de tamanho
médio), quem pode um sobressalto? No entanto, o animal parece pacífico. Sou
quase capaz de jurar que há uma sombra de sorriso no focinho do bicho. O meu
primeiro pensamento (enquanto fui capaz de pensar) é procurar o dono do macaco.
Olho ao redor – a praia está deserta.
Façam o favor de não rir. Isto é sério, e
eu não tenho culpa de que estas coisas só a mim acontecem. A praia está
deserta, repito. Não sei por que mágicas artes desapareceram todos os meus
vizinhos. Tenho o mar diante de mim e ao lado um macaco. Que devo fazer? Sorrio
palidamente, torno a olhar e resigno-me. O chimpanzé segura-me as mãos e
aperta-as. Fito-o diretamente nos olhos e o assombro me paralisa: se aquilo que
vejo não são lágrimas nada entendo.
O
macaco aconchega-se, sem me largar as mãos. E eu, que preciso urgentemente
fazer qualquer coisa, começo a falar. De quê?
Do mar, da areia, do sol, dos
rochedos à flor da água, das gaivotas que passam em silêncio, das nuvens
brancas e leves que flutuam no ar e lentamente se desfazem. Falo da gente que
ali havia estado, das crianças risonhas, dos adolescentes em flor, dos adultos
cansados mas ainda com esperanças. Falo dos homens em geral, do mundo, da paz e
da guerra, do amor e das suas vontades, das flores e das colheitas, do trabalho
e do sonho, de tantas coisas.
O macaco ouve.
Responde
como pode, apertando-me os dedos. E eu continuo.
Quando não tenho mais nada a
dizer, falo de mim. E então repito tudo quanto tinha dito antes.
Depois de um
grande silêncio. Sei que estou sozinho. A mão quase humana solta a minha mão.
Levanto-me. A praia está outra vez povoada. Que aconteceu? Terei sonhado?
Procuro o meu chimpanzé, e só vejo pessoas como eu. Sonhei, com certeza. Estou
a pronto de rir de mim mesmo, quando olho para o chão. Não sonhei. Nítidas, bem
vincadas, estão ali pegadas inconfundíveis. E na areia úmida, que uma onda de
longe ameaça, leio palavras escritas por um dedo desajeitado: “Ser homem, é
isso?”
A onda vem a
correr sobre a água, enrola-se, sei o que vai acontecer, quero evitar o inevitável,
quero o testemunho – e a onda rebenta, espraia-se, desliza sobre a areia, apaga
as palavras, a interrogação, o espanto.
Fiquei
desamparado. Tivera nas mãos um segredo (de quê, não sei) e agora ali estava,
vazio, solitário, espoliado. Mas isto aconteceu, juro. E é bom que o leitor
acredite que estas coisas acontecem. Preciso da sua companhia.
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