domingo, 26 de outubro de 2014

As Vozes do Espelho





"(...) A esperança surge como pode. Dentre os destroços da história, ela nasce para um povo inteiro, emerge novamente para todos aqueles que recusam a ir contra o que a própria natureza exige, contra a razão humana: sonhar.
O sonho, como a espera, é movimento e reaparece com força à debilidade para nos lembrar que ainda estamos vivos, apesar de tudo, e que devemos mudar a imagem grotesca que o espelho da realidade os revela."
Trecho da apresentação dos editores do original do livro "As vozes do Espelho: contos, poemas e desenhos do zapatismo para construir o futuro" SP, 2001



O livro entrelaça diversos escritores e textos, com ilustrações de crianças das comunidades indígenas em resistência de Chiapas. 


Escolhi deste livro um lindo texto de José Saramago, que fala de forma simples sobre a existência humana. Ao pensarmos sobre a nossa existência percebemos que não existem fronteiras, etnias, raças ou distancias que nos separam. 
Somos seres com mais semelhanças que diferenças, quanto tempo levaremos para aprender isto?


Do livro "As vozes do Espelho - Contos, poemas e desenhos do zapatismo para construir o futuro":




Um encontro na praia

José Saramago

        O caso é estranho, mas, se repararmos bem, não é mais estranho do que qualquer dessas pequenas coisas que todos os dias nos acontecem, e que, por serem pequenas e repetidas, acabam perdendo seu significado. E já não falo de maravilhoso, que é moeda gasta, quando não falsificada. E ainda que assim fosse, têm-me acontecido nos últimos tempos tantos casos estranhos que, mais um menos um, não vem por em tirar à minha reputação. O local não tem nada de extravagante.

Elegemos uma praia dentre as muitas que tem a terra e imaginemos que estamos sentados ao sol, a receber do ar e da luz os benefícios que a nossa boa vontade admite. Em nossa volta estão as pessoas que costumam estar na praia: crianças, adolescentes, gente crescida e gente que não crescerá mais. Há corpos bonitos, outros menos, nadadores atrevidos, outros tímidos – e tudo se confunde em azul e verde, algas e aromas fortes, gritos de alegria, no calor que desce do céu e sobe da areia. É muito bom.
Estou sentando, a receber o meu quinhão de saúde. Olho o mar, um pouco melancólico (eu, não o mar), e começo a pensar que é hora do banho.

Vou iniciar o movimento que me levará até à água, quando sinto que alguém vem sentar-se o ao meu lado. Ora, eu estou sozinho, não espero ninguém. Sinto esta presença como um abuso à minha intimidade. Disfarço, não olho, mas reprimo o impulso de me levantar: sou bem-educado, e não gosto de ser grosseiro. 

Debato-me nesta indecisão, quando, de repente, sinto a mão do intruso pousar sobre o meu ombro. Já não dá mais para fingir-me de distraído. Olho e vejo: é um macaco. Não sou medroso, juro, mas, assim sem mais nem menos, ao dar de cara com  um chimpanzé (e é um chimpanzé de tamanho médio), quem pode um sobressalto? No entanto, o animal parece pacífico. Sou quase capaz de jurar que há uma sombra de sorriso no focinho do bicho. O meu primeiro pensamento (enquanto fui capaz de pensar) é procurar o dono do macaco. Olho ao redor – a praia está deserta.

        Façam o favor de não rir. Isto é sério, e eu não tenho culpa de que estas coisas só a mim acontecem. A praia está deserta, repito. Não sei por que mágicas artes desapareceram todos os meus vizinhos. Tenho o mar diante de mim e ao lado um macaco. Que devo fazer? Sorrio palidamente, torno a olhar e resigno-me. O chimpanzé segura-me as mãos e aperta-as. Fito-o diretamente nos olhos e o assombro me paralisa: se aquilo que vejo não são lágrimas nada entendo.

         O macaco aconchega-se, sem me largar as mãos. E eu, que preciso urgentemente fazer qualquer coisa, começo a falar. De quê? 
Do mar, da areia, do sol, dos rochedos à flor da água, das gaivotas que passam em silêncio, das nuvens brancas e leves que flutuam no ar e lentamente se desfazem. Falo da gente que ali havia estado, das crianças risonhas, dos adolescentes em flor, dos adultos cansados mas ainda com esperanças. Falo dos homens em geral, do mundo, da paz e da guerra, do amor e das suas vontades, das flores e das colheitas, do trabalho e do sonho, de tantas coisas
O macaco ouve.

Responde como pode, apertando-me os dedos. E eu continuo. 
Quando não tenho mais nada a dizer, falo de mim. E então repito tudo quanto tinha dito antes.

Depois de um grande silêncio. Sei que estou sozinho. A mão quase humana solta a minha mão. Levanto-me. A praia está outra vez povoada. Que aconteceu? Terei sonhado? Procuro o meu chimpanzé, e só vejo pessoas como eu. Sonhei, com certeza. Estou a pronto de rir de mim mesmo, quando olho para o chão. Não sonhei. Nítidas, bem vincadas, estão ali pegadas inconfundíveis. E na areia úmida, que uma onda de longe ameaça, leio palavras escritas por um dedo desajeitado: “Ser homem, é isso?”

A onda vem a correr sobre a água, enrola-se, sei o que vai acontecer, quero evitar o inevitável, quero o testemunho – e a onda rebenta, espraia-se, desliza sobre a areia, apaga as palavras, a interrogação, o espanto.

Fiquei desamparado. Tivera nas mãos um segredo (de quê, não sei) e agora ali estava, vazio, solitário, espoliado. Mas isto aconteceu, juro. E é bom que o leitor acredite que estas coisas acontecem. Preciso da sua companhia.





domingo, 5 de outubro de 2014

Nada é impossível de mudar


Ando sentindo falta de escrever impressões do momento vivido neste blog, vamos matar a saudade:

Comecei a me interessar por política aos 12 anos, meu pai levava a família à comícios na cidade onde morávamos, ele sempre se identificou com o partido Trabalhista e com os Brizolistas. Então, em 1984, colava cartazes na rua da minha casa para o PDT.
Mas participando de grupos de jovens, lendo e conversando optei em 1986 em fazer campanha para o PT (ainda não tinha idade para votar). O programa deste partido identificava-se muito mais com o que eu pensava e deseja para nosso país, e deste ano em diante, faço campanha para o PT, isto significa que gastei muito do meu tempo, energia, dinheiro, sonhos, construções e frustações com este partido.
Chegamos ao governo (não ao poder), mas ainda há tanto a avançar na política e nos processos democráticos. 

Sempre ao final de uma eleição, fico decepcionada, as discussões aos governos são sempre superfíciais e pouco ideológicas. E o pior são os congressistas escolhidos pela população para nos representar nos parlamentos, a maioria das bancadas são sempre conservadoras e comprometidas a manter os interesses das grandes corporações, empresários e do Capital.

Nada é impossível de mudar, só que o processo é longo e cheio de armadilhas e podemos nos perder pelo caminho ...


Como amo poesia, escolhi o poeta Bertold Brecht para ilustrar o dia de hoje.

O Analfabeto Político

Bertold Brecht


"O pior analfabeto é o analfabeto político. 
Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. 
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. 
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. 
Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo." 


Nada é impossível de Mudar.

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." 


Privatizado

"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. 
É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence."




        Se os tubarões fossem homens

 Bertold Brecht




Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. 
Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. 
Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. 
Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. 
Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. 

Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.
As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. 

Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. 

Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. 

Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.
A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. 

Também haveria uma religião ali.
Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. 
E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.




Sugestão de site com poesias de Bertolt Brecht:
http://www.culturabrasil.org/brechtantologia.htm

domingo, 28 de setembro de 2014

Brilhar para sempre - Maiakovski

Pôr-do-sol de Van Gogh
  "Vamos, poeta,

cantar,
luzir
no lixo cinza do universo..."





A Extraordinária Aventura vivida 
por 
Vladimir Maiakóvski 
no Verão na Datcha
A tarde ardia em cem sóis
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava,
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!
E grito ao sol:
Parasita!
Você aí, a flanar pelos ares,
e eu aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!
E grito ao sol:
Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostra medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!
Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar, eu lhe mostro
o samovar:
Pois bem,
sente-se, astro!
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!¿
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.


O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente
.

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá pra o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.
Tradução: Augusto de Campos



Esta semana lembrei de um dos tantos livros que não me desfaço, esse comprei em um sebo, em uma época que para comprar um livro eu economizava por meses. 
Hoje você consegue obras completas na internet, bons tempos



terça-feira, 9 de setembro de 2014

Poema para Tolstói de Mario Quintana



"Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia."
Tolstói (escritor russo)

Como não gostar de Tolstói: criou uma escola para crianças na zona rural,  foi um escritor genial, fugiu de casa aos 82 anos e Mario Quintana em sua homenagem diz deste velho caduco:"Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!"




Poema da Gare de Astapovo

               

                                             De: Mario Quintana

O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na Gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,

Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!

E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,

E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Eu amo o longe e a miragem...

Menina mexicana desconheço autoria da foto (internet)


Cântico negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio: pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre.





Trecho do poema:

" Amém" de José Regio





Ai!, a vida!


Que a vida não tem limites,

E quem vive não tem paz,

Menino, por mais que sonhes!,

Por mais que desejes, bêbado!,

Palhaço, por mais que grites!,

Por mais que vás, acrobata!,

Por mais que vás...!


Ai!, a vida!


... Assim, me surge tão bela,

Tão digna de ser vivida,

Sorvida

Até se esgotar,

Que eu sei que é faminto dela

Que me hei-de matar.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Quintanar


Dizer bobagens areja a alma...

O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem...

São os passos que fazem os caminhos.

O pior dos nossos retratos é que vão ficando cada dia mais jovens.

Se eu fosse acreditar mesmo em tudo que penso, ficaria louco.

Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança, vivem ambas no Presente, quando deviam estar, é lógico, uma na casa do Passado e a outra na do Futuro. Quanto ao Presente -ah! - esse nunca está em casa.

O fato é um aspecto secundário da realidade.

Mario Quintana
Foto: Saudade de ontem/Sandra



Se as coisas são inatingíveis
Ora...não é motivo para não querê-las
Que tristes os caminhos
Se não fora a presença distante das estrelas.
Mario Quintana



domingo, 20 de julho de 2014

Rosa de Hiroshima

Vida e Morte
Pintura: Klimt






Nesta semana a humanidade andou para trás em relação a um mundo menos violento.

A vida segue com seus dramas e sofrimentos, assim como a esperança que um dia o homem aprenda a conviver em paz.


 


Rosa de Hiroshima


Ney Matogrosso


Pensem nas crianças
Mudas telepáticas

Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada